Os Jogos e os Temas Transversais na Educação Matemática: Refletindo Sobre Desigualdade Social na Escola Através do Jogo Contando os Pontos
Matemática – CPAR
RISSO, J. P. [1]
OTAHARA, B. M. M 1
SILVEIRA, G. G. F. 1
RODRIGUES, T. D. [2]
Palavras-chave:
Jogos; Temas Transversais; Desigualdade Social; Educação matemática.
1 Introdução
As relações humanas, desde os primórdios das civilizações, produzem algum nível de desigualdade social. Com o advento do capitalismo, o fenômeno da desigualdade social intensificou-se, produzindo elevados índices de exclusão, nas múltiplas esferas que compõem a vida em sociedade. Até o fim do primeiro semestre de 2016, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, a população brasileira era cerca de 206,08 milhões de habitantes. Considerando informações referentes aos declarantes do Imposto de Renda Pessoa Física no mesmo ano (ano-calendário 2015), apenas 0,3% dos contribuintes (com renda mensal igual ou superior a 160 salários mínimos) recebem os melhores salários e concentram cerca de 23% de toda a riqueza declarada em bens e ativos financeiros.
Um relatório sobre desigualdade social, publicado pela Oxfam Brasil em 27 de setembro de 2017, e intitulado A distância que nos une, revela em detalhes a disparidade socioeconômica existente no Brasil, permeando inclusive análises por gênero e etnia. O relatório aponta estatísticas lastimáveis. Segundo o mesmo, pessoas que recebem um salário mínimo teriam que trabalhar 19 anos para equiparar um mês de renda média do 0,1% mais rico da população; 5% da população – os mais ricos – recebem, por mês, o mesmo que os demais 95% juntos; mantida a tendência dos últimos 20 anos, a Oxfam Brasil calcula que mulheres terão equiparação salarial com os homens somente em 2047, e a equiparação da renda média dos negros com a dos brancos ocorrerá somente em 2089.
Ao longo das últimas décadas, direitos essenciais à vida foram conquistados gradualmente por meio de articulações de diversificados grupos sociais e garantidos legalmente enquanto políticas públicas. Porém, apenas nos últimos três anos, muitos destes direitos foram alterados ou revogados, culminando em impactantes retrocessos. A emenda do Teto de Gastos; a Reforma da Previdência; a Reforma Trabalhista; a Reforma do Ensino Médio e a ‘’Escola Sem Partido’’ são as principais medidas responsáveis por inferir direta e negativamente na redução das desigualdades.
Perante este contexto assolador que afeta milhões de brasileiros, torna-se fundamental construir estratégias de enfrentamento da desigualdade nos múltiplos âmbitos de atuação social. O ambiente escolar é um desses espaços que podem contribuir à construção do pensamento crítico, o desenvolvimento da cidadania do aluno e, por conseguinte, fomentar a luta pela igualdade social.
Neste sentido, o presente trabalho traçou como objetivos discorrer sobre o tema apresentado, paralelamente à apresentação de uma proposta de abordagem do mesmo nas aulas de matemática, que foi realizada e testada com alunos do terceiro ano do Ensino Médio, na qual visou expor e discutir a desigualdade social no Brasil, em particular a desigualdade de renda, enquanto tema transversal, a partir do jogo Contando os Pontos, além de mediar o estudo de conceitos referentes a Estatística e intervalos numéricos.
2 Aspectos Teóricos e Metodológicos
A pesquisa foi realizada numa perspectiva qualitativa, na qual “[…] tem no seu íntimo bases de compreensão da ciência e de seus produtos e processos, como construção crítica e histórica do conhecimento, bem específicos” (NETO, 2012, p.134).
O principal procedimento metodológico adotado consiste na pesquisa-ação, pois a realização deste trabalho visa intervenções (didáticas – produção de materiais, formação crítica dos alunos e do professor em exercício, dentre outras) na escola onde será realizada a atividade norteadora da pesquisa. A pesquisa-ação é um tipo de pesquisa social ‘’[…]que é concebida e realizada em estreita associação com uma ação ou com a resolução de um problema coletivo e no qual os pesquisadores e os participantes representativos da situação da realidade a ser investigada estão envolvidos de modo cooperativo e participativo’’ (THIOLLENT, 1985, p. 14).
A questão de pesquisa que orientou a construção deste estudo foi: testar e analisar uma proposta de ensino em sala de aula, sobre o tema transversal desigualdade social, conceitos da Estatística e, intervalos numéricos, através do jogo Contando os Pontos, possibilitando suporte didático aos professores da rede básica de ensino. Quais as potencialidades e dificuldades que uma aula com estes pressupostos apresentaria?
2.1 Contexto e Participantes
Participaram 66 alunos, que compõem duas turmas de terceiro ano do Ensino Médio, do turno matutino, de uma escola pública do município de Paranaíba-MS, na qual exerce uma parceria com o Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID)[3]. A série foi escolhida tendo por base os Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio, referente a área de Ciências da Natureza, Matemática e suas Tecnologias, segundo o qual os conteúdos referentes a Estatística, presentes na atividade realizada, são introduzidos na escola durante o 3º ano do Ensino Médio (Ministério da Educação, 2000).
O município de Paranaíba localiza-se no estado de Mato Grosso do Sul, que por sua vez compõe região Centro-Oeste do Brasil. Segundo o último censo realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2010), realizado em 2010, a população de Paranaíba-MS, era de 40.192 pessoas, e em 2016, foi estimada em 41.626 habitantes.
O PIB per capita – segundo dados do IBGE de 2010 e 2014 – cresceu, respectivamente de R$ 15.220,51 para R$ 24.464,35. As principais atividades econômicas são a pecuária, a agricultura, negócios de médio e pequeno porte, e localiza-se estrategicamente numa região de integração de quatro importantes economias do Brasil (Mato Grosso do Sul, São Paulo, Minas Gerais e Goiás).
2.2 Procedimentos de Pesquisa
A atividade em campo iniciou-se com a apresentação dos pesquisadores aos alunos e a contextualização institucional do estudo. Posteriormente, os alunos foram convidados a se organizarem em grupos compostos por seis integrantes e, se o total de participantes fosse um múltiplo de seis, alguns grupos poderiam ser formados por sete pessoas. Cada grupo formado recebeu o tabuleiro e as regras do jogo Contando os Pontos (Anexo 1), jogo este que se encontra nos Cadernos do Mathema, direcionado ao Ensino Médio, obra desenvolvida por Smole et al. (2008), e foram orientados a jogarem seis rodadas.
Após esta primeira etapa da atividade, os alunos deveriam jogar novamente o jogo Contando os Pontos, porém, além das regras originais, a seguinte regra foi acrescida: através de sorteio, 1 aluno de cada grupo, começará o jogo com 50 pontos, 2 alunos começarão o jogo com 20 pontos e os demais alunos iniciarão o jogo com 0 pontos. Nesta segunda etapa objetivava-se que os alunos experimentassem a desigual distribuição de renda em nosso país, porém, em momento algum, até o fim da mesma, foi mencionado que tal tema estava sendo abordado.
Em seguida, reservou-se alguns minutos para discussões e apontamento das percepções dos estudantes sobre as duas primeiras etapas. Quando ficou claro que o objetivo geral da atividade era abordar o tema desigualdade social, iniciou-se a terceira etapa: apresentação em Power Point (Anexo 2) de dados referentes ao tema, presente no relatório[4] sobre desigualdade social, publicado pela Oxfam Brasil em 27 de setembro de 2017, e intitulado A distância que nos une, e apontamentos de formas de combate a desigualdade. Concluiu-se a atividade com a transmissão do videoclipe da música Everything Changes[5] do grupo SOJA, em parceria com o cantor brasileiro Falcão (O Rappa).
3 Resultados e Discussões
Os resultados da atividade realizada em campo foram positivos e possibilitaram reflexões relevantes sobre o tema em estudo. As duas primeiras etapas, nas quais tinham o jogo como base, causou nos alunos um combinado de estranhamento e empolgação. Smole et al. (2008, p. 09) discorre sobre tal comportamento, afirmando que, ‘’[…] em se tratando de aulas de matemática, o uso de jogos implica uma mudança significativa nos processos de ensino e aprendizagem que permite alterar o modelo tradicional de ensino, que muitas vezes tem no livro e em exercícios padronizados seu principal recurso didático’’.
Em relação a primeira etapa, algumas práticas durante sua execução despertaram a atenção dos pesquisadores. Os alunos foram convidados a jogarem seis rodadas do jogo Contando os Pontos, porém, no decorrer desta etapa, os mesmos afirmaram que tal quantidade de rodadas era excessiva. Por conseguinte, decidiu-se que a segunda etapa se daria com menos rodadas, ficando acordado um total de quatro rodadas. Esta atitude, além do propiciar qualidade ao processo em praxe, atendeu pressupostos da pesquisa ação, na qual ‘’ […] inclui todos os que, de um modo ou outro, estão envolvidos nela e é colaborativa em seu modo de trabalhar’’ (TRIPP, 2005, p. 448).
Assim, notou-se que a repetição e o tempo foram fatores que inferiram no interesse e participação dos alunos, logo, devem ser considerados minuciosamente durante aulas em que utiliza-se o jogo como recurso didático. Estes fatores poderão ser objetos de estudos futuros, permeando desde a revisão de literatura até investigações especificas em campo. Contudo, todos participaram desta etapa e, com relação ao conceito de intervalos numéricos, uma parcela dos alunos apresentaram dificuldades na identificação do intervalo a qual pertencia a pontuação obtida durante as rodadas. Um dos alunos, por exemplo, não conseguiu perceber que o valor 0,052 Є ]0,01 ; 0,1], denotando carestia de pré-requisitos básicos.
O objetivo da segunda etapa, que era possibilitar uma experimentação da discrepância financeira no Brasil através da adaptação do jogo Contando os Pontos, foi tangido ao seu findar. Já em seu prelúdio, notou-se que os estudantes incomodaram-se com a injusta regra em que poucos iniciam o jogo com mais pontos. Quando todos os grupos finalizam as rodadas, verificou-se que dentre os nove grupos, apenas um deles teve como vencedor um jogador que iniciou com 20 pontos e um grupo com vencedor que estreou com 0 pontos.
Por meio da analogia entre a estrutura social e o jogo adaptado, foi possível promover aos alunos percepções sobre o seu meio de vivência, além de eliciar significados próprios, oportunizar debates éticos, contribuir à construção da cidadania, proporcionar oposição a injustiças, dentre outros. Uma das perguntas mais frequentes deste instante foi: ‘’por que ele (a) tem mais pontos do que eu? ’’. Muitos dos alunos que venceram a primeira etapa (jogo em sua forma original) começaram com 0 pontos, e perderam. Este fato explicitou o fenômeno da meritocracia, frequentemente presente nas múltiplas relações de poder, e denotando que o ‘’sucesso’’ social não necessariamente está associado ao esforço, mas, amiudadamente, beneficia ás camadas mais favorecidas da sociedade.
Após jogarem a versão adaptada do jogo, iniciou-se a etapa final da atividade. Nesta etapa, onde apresentou-se dados estatísticos atuais sobre a situação social, econômica e política brasileira, notou-se os sentimentos de surpresa e repulsa frente a tais informações estatísticas transmitidas. Tais sentimentos acentuaram-se, sobretudo, entre o grupo de alunos que exercem alguma atividade remunerada, precipuamente, ao se perpassar as estatísticas sobre distribuição de renda, na qual, por exemplo, quando informou-se que um indivíduo que ganha um salário mínimo mensamente, necessitaria trabalhar 19 anos para ganhar o equivalente a um mês de renda média do 0,1% mais rico da população brasileira (OXFAM, 2017). Este fato sublinhou o fenômeno da alienação, além de salientar a carência de aulas que visem a construção da criticidade dos alunos.
4 Considerações Finais
A avaliação da atividade como um todo indicou um alto grau de eficácia em relação aos objetivos traçados, na qual eram: discorrer sobre o tema apresentado, paralelamente à apresentação de uma proposta de abordagem do mesmo nas aulas de matemática, que foi realizada e testada com alunos do terceiro ano do Ensino Médio, na qual, por sua vez, visou expor e discutir a desigualdade social no Brasil, enquanto tema transversal, a partir do jogo Contando os Pontos, além de mediar o estudo de conceitos referentes a Estatística e intervalos numéricos.
Frente ao cenário exposto, e as investigações possibilitadas por este trabalho, notou-se que aulas de matemática pautadas em discussões de cunho social, político e econômico podem favorecer a qualidade de ensino e aprendizagem, pois tangem a realidade e despertam uma gama de significados dos sujeitos em idade escolar (através dos instrumentos e signos dos jogos, por exemplo. Sobre esse aspecto, Monroe (2017) aborda o conceito de aprendizagem mediada proposto por Vygotsky (1989), que:
É a aquisição de conhecimentos realizada por meio de um elo intermediário entre o ser humano e o ambiente. Para Vygotsky, há dois tipos de elementos mediadores: os instrumentos e os signos – representações mentais que substituem objetos do mundo real. Segundo ele, o desenvolvimento dessas representações se dá sobretudo pelas interações, que levam ao aprendizado. (MONROE, 2017 apud VYGOTSKY, 1989)
Referências
BRASIL. CETAD. Grandes Números IRPF – Ano-Calendário 2015 (Exercício 2016). 2017.
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA – IBGE. O Cidades [online]. Disponível em: . Acesso em 02/07/2017.
NETO, J. A. C. Metodologia da Pesquisa Científica: da graduação à pós-graduação. 1. ed. Curitiba: Editora CRV, 2012.
OXFAM. A Distância Que Nos Une. 2017. 94 p. Disponível em: www.oxfam.org.br/sites/default/files/arquivos/Relatorio_A_distancia_que_nos_une.pdf.
Acessado em 30 de setembro de 2017.
SMOLE, K. S.; PESSOA, N.; DINIZ, M. I.; ISHIHARA, C. Jogos de Matemática: de 1º e 3º ano. Porto Alegre: Artmed, 2008. (Cadernos do Mathema – Ensino Médio).
THIOLLENT, Michel. Metodologia da Pesquisa-Ação. São Paulo: Cortez,1985.
TRIPP, D. Pesquisa-ação: uma introdução metodológica. Revista Educação e Pesquisa, v. 31, n.3, p.433-466, set/dez 2005.
VIGOTSKY, L. S. A formação social da mente: o desenvolvimento dos processos psicológicos superiores. 2º. ed. Porto Alegre: Martins Fontes, 1988. 168p.
Anexo 1: Disponível em: <drive.google.com/open?id=0B3c47jJdq5Q2NFI2MVp5a3YyY2s>
Anexo 2: Disponível em: <drive.google.com/open?id=0B3c47jJdq5Q2SGVOZHJHcjgzMms>
[1] Graduando em Licenciatura em Matemática pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), campus de Paranaíba. Integrante do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID). João Paulo Risso: joaormat@gmail.com; Barbara Maria Mendes Otahara : barbara.otahara@outlook.com; Giulia Gonçalves de Freitas Silveira: giuliadefreita@hotmail.com.
[2] Doutor em Educação Matemática pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP), Rio Claro/SP. Professor do Departamento de Matemática, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), Paranaíba/MS. Endereço para correspondência: Av. Av. Pedro Pedrossian, 725, Bairro Universitário, Paranaíba/MS, CEP 79500000. E-mail: thiagodonda82@gmail.com.
[3] O PIBID foi desenvolvido pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e consiste em uma iniciativa para o aperfeiçoamento e a valorização da formação de professores para a educação básica.
[4] Disponível em < www.oxfam.org.br/sites/default/files/arquivos/Relatorio_A_distancia_que_nos_une.pdf >.
[5] Disponível em < https://www.youtube.com/watch?v=fNwcrI7_f9s >